A primeira lembrança que me vem à memória quando penso no Flor – é assim que nos referimos ao Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio – é de um baile ocorrido no dia 01 de dezembro de 2006. Naquele dia, a UFSCar aprovou seu Programa de Ações Afirmativas para estudantes negros (pretos e pardos). A reunião do ConsUni (Conselho Universitário da Universidade Federal de São Carlos), que aprovou a implementação do Programa, ocorreu pela manhã e no final daquela sexta-feira nos reunimos na sede do Flor para comemorar essa conquista do movimento negro são carlense. Conquista de estudantes, de docentes e pesquisadores, muitos deles congregados no NEAB (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros) da UFSCar. A comemoração foi regada a muito samba-rock e black music. Aquela foi uma noite incrível, poucas das minhas memórias alcançam a mesma alegria que contagiou e se espalhou pelo clube naquela noite!
O Flor nasceu como um espaço associativo com fins recreativos, culturais e beneficentes a partir da reunião de negros e negras da comunidade de São Carlos que viram no clube uma alternativa frente aos impedimentos criados pelo racismo no início do século XX. Desde esse período o Flor já sediou bailes de debutantes, bailes das rainhas do clube, blocos carnavalescos, bailes de carnaval, bailes de black music e de samba-rock e muitas rodas de samba e pagode. Nos anos iniciais do grêmio, assim como os demais clubes sociais negros, o Flor era reconhecido pelo glamour de seus eventos. Os bailes desses tempos eram eventos sociais que demandavam uma longa e primorosa organização desde a preparação dos cabelos, passando pela escolha dos trajes, sempre formais e muito elegantes. A música, a dança e o encontro são constantes nas atividades realizadas pelo clube e no clube. Esses elementos, atualmente, estão em eventos como o baile em comemoração ao aniversário do clube, que em 2028 irá comemorar seus 100 anos!
Entre os registros fotográficos que, gentilmente, me foram cedidos pela direção do clube durante o período da pesquisa de doutoramento há uma constante, são registros de reuniões festivas, almoços, aniversários, bailes. Nos vídeos que compõem os registros mais recentes há música, dança e pessoas congregadas. Nessas imagens e nos vídeos e ainda nas experiências que vivi no Clube, o sorriso, a alegria, o compartilhamento sempre se fizeram presente.
A história do clube não se faz sem seus sujeitos, sem as pessoas que fizeram um mutirão para construir a sede do clube, as que dedicaram e aquelas que vêm dedicando suas energias para que o Flor mantenha sua história e suas práticas junto à comunidade negra de São Carlos e arredores, e tenha se transformado em uma das principais referências entre os clubes negros do estado. É nesse movimento de pessoas articulado em grupos locais e em âmbito nacional que o Flor vem construindo sua história junto às gerações. O movimento clubista realizou dois encontros nacionais (2006 e 2010) a partir dos quais foram articuladas as demandas dos clubes e a própria ação coletiva entre organizações negras, majoritariamente, centradas no sul e sudeste do país pelo reconhecimento das sedes sociais e resguardo enquanto patrimônio. O Flor hoje, ao lado da Sociedade Beneficente 13 de Maio de Piracicaba e o Clube Beneficente Cultural e Recreativo 28 de Setembro de Jundiaí compõe a lista dos clubes do estado que tiveram seus processos de tombamento abertos pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). O tombamento da sede do Flor a nível municipal ocorreu no ano de 2011. Desde essa data a fachada, o piso interno e o mezanino compõem parte do patrimônio da cidade de São Carlos.
O reconhecimento material do espaço não se sobrepõe à dimensão das práticas culturais realizadas em seu interior, já que são elas que tem dado significado ao prédio desde 1928. Além de ser reconhecido como um espaço negro no coração da cidade, famílias são-carlenses tem suas histórias intercruzadas à história do clube: nascimentos, namoros, casamentos, amizades nasceram e continuam nascendo a partir deste espaço. Parte dessa história feita por pessoas está materializada no grupo “Família Samba-Rock”. O grupo coordenado pelos professores de dança e ativistas da cultura samba-rock Carlos Eduardo Santa Maria e Danitielle Calazans se reuniu por anos na sede do clube para ensinar samba-rock para iniciantes, como eu, e iniciados, como filhos e netos daqueles que estiveram presentes nos tempos áureos dos bailes do clube, entre os anos 80 e 90.
Em novembro comemoramos o Mês da Consciência Negra, a comemoração faz alusão à morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares (1695) rememorando o enfretamento dos negros ao regime escravocrata. Essa data é incorporada por nós como um marco de luta dos negros ao redor de todo o globo, e particularmente no Brasil. Luta que hoje tem sido traduzida em movimentos como o “Vidas Negras Importam” no Brasil ou o “Black Lives Matter” nos EUA. O Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio, carinhosamente o nosso Flor, nos ensina sobre a capacidade da cultura negra produzir e (re)criar – na maioria das vezes atravessados por processos de subalternização, dor e apagamento de suas próprias histórias – por meio da ação coletiva entre gerações. É a alegria, a coletividade, a música e a dança que marcam a história de luta e resistência de uma comunidade a partir do Flor de Maio em São Carlos!
Texto escrito por Karina Almeida de Souza – Professora Doutora da Universidade Federal do Tocantins e Membro da Família Samba-rock São Carlos